“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas … que já têm a forma do nosso corpo … E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares … É o tempo da travessia … e se não ousarmos fazê-la … teremos ficado … para sempre … à margem de nós mesmos…” (Fernando Pessoa).
Em uma escola da cidade de Campinas, a disciplina, Geometria Espacial, era a “pedra no sapato” dos alunos do Ensino Médio. Muitos ficavam de recuperação. Os professores se esforçavam para ensinar os conceitos abstratos que o conteúdo exigia, desenhando as figuras geométricas na lousa. Esses desenhos precisavam ser apreendidos pelos alunos, tomados como reais, para que a teoria ali subjacente fosse assimilada.
Um ano, em uma das turmas, um fato novo: uma aluna deficiente visual na classe. E agora? Se para todo mundo, ouvir o professor, ver as figuras desenhadas, já era difícil para entender a matéria, imagine só escutar as explicações? Será que descrever as figuras bastaria? Mas era tudo tão abstrato?
“Esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares…” Diante de uma realidade nova – ensinar geometria espacial a uma aluna deficiente –, a professora da disciplina entendeu que ou era “tempo de travessia”, ou se negaria a essa aluna o direito de aprender esse conteúdo.
E ousando fazer a mudança, ela, corajosa, buscou caminhos. E como diz o ditado, “quem procura, acha”, ela pensou se, em vez de desenhar na lousa, ela criasse, usando palitos de churrasco ou de sorvete, as figuras que, por anos e anos, ela havia desenhado na lousa?
Assim ela fez. Confeccionou triângulos, cubos, tetraedros, icosaedros, poliedros, dodecaedros e tantas outras figuras e as trouxe para as suas aulas. Foi difícil para ela preparar esse material, mas ela pôde contar também com a ajuda da professora de artes (interdisciplinaridade). Para a aluna deficiente visual, manusear aquelas figuras fez com que a teoria se tornasse prática e ficasse muito mais simples entender aqueles conceitos abstratos.
Mas algo surpreendente ocorreu naquela turma. O rendimento da turma melhorou sensivelmente. O conteúdo da disciplina, até então, difícil de ser assimilado, tornou-se muito mais fácil. O que era abstrato ficou concreto. Valendo-se das figuras que a professora havia confeccionado para a aluna deficiente visual, os demais alunos da sala entenderam mais claramente aqueles conceitos que a professora tentava ensinar-lhes, apenas desenhando na lousa.
E a experiência alastrou-se. Os demais professores dessa disciplina passaram a usar essa metodologia em suas aulas. Tiveram, inclusive, a ideia de desafiar os alunos para que confeccionassem, eles mesmos, várias figuras para serem expostas nas atividades das “Feiras de Cultura”, realizadas pela escola.
A professora, que se negou ficar “à margem de si mesma”, “abandonou as roupas usadas” e ousou. E nessa ousadia, ela abriu um mundo, não só para a aluna deficiente visual, mas para todos os demais alunos, para os outros professores e para a escola.
Será, catequistas, que também não seria o caso de, de vez em quando, “abandonar as roupas usadas”, “esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares” e “fazer a travessia”? Por que não ousar?
Por Débora Corigliano é mãe de dois filhos, Psicopedagoga, Autora do livro Orientando Pais, Educando Filhos, Palestrante e especialista em Orientação Familiar. Atende em seu consultório crianças e adolescentes com dificuldades escolares e comportamentais além da orientação ao pais e educadores. Realiza assessoria pedagógica em escolas. Participa semanalmente do Programa Nossa Gente na Rádio Brasil, sempre falando sobre harmonia familiar.